terça-feira, 12 de outubro de 2021

Mulherzinhas e suas lições.


Desde que comecei a investir na literatura, tenho percebido como podemos encontrar, nela, respostas para nossos dramas. Este diálogo do livro Mulherzinhas me tocou profundamente, pois descreve a luta que travo contra meu temperamento há algumas décadas. No texto, Jo conversa com a sra. March, sua mãe, sobre um episódio com sua irmã caçula onde esta quase morreu sem que Jo a perdoasse por algo que ela lhe fizera. Deixo o diálogo para vocês, colegas coléricas, que, como eu, seguem acumulando tentativa, frustração, arrependimento e remorso ao longo dos anos de luta. Mudar é possível, mas como brilhantemente escreveu a autora neste diálogo, "todos temos nossas tentações, algumas muito piores que as suas, e muitas vezes leva-se toda uma vida para vencê-las. Deixo, abaixo, o diálogo mais lindo que já li neste livro até o momento:


"- Tem certeza de que ela está bem? - sussurrou Jo olhando com remorso para a cabecinha dourada, que podia ter desaparecido para sempre de sua vista sob o gelo traiçoeiro. 

- Muito bem, querida. Ela não se feriu, nem vai ficar resfriada, acho, porque vocês foram rápidos e eficientes trazendo-a toda coberta para casa respondeu a mãe, carinhosa. 

- Laurie fez tudo, eu não cuidei dela. Mãe, se ela tivesse morrido, a culpa teria sido minha - e Jo deixou-se cair ao lado da cama, derramando lágrimas de arrependimento, contando tudo o que acontecera, condenando amargamente sua dureza de coração e agradecendo em meio a soluços por ter sido poupada do grave castigo que podia ter caído sobre ela. É esse meu temperamento horrível! Tento me livrar dele. Quando penso que consegui, ele volta à tona pior que antes. Oh, mamãe, o que posso fazer? O que posso fazer?  - gritou a pobre Jo, desesperada.

- Vigiar e orar, querida. Nunca se fartar de tentar, e nunca achar que é impossível vencer seus defeitos - disse a sra. March, puxando a cabeça desgrenhada até seu ombro e beijando o rosto molhado tão ternamente que Jo chorou mais forte ainda. 

- Você não sabe nem imagina como isso é ruim! Parece que eu seria capaz de fazer qualquer coisa quando estou com raiva. Fico tão selvagem, posso ferir qualquer pessoa e gostar disso. Tenho medo de realmente fazer alguma coisa horrível algum dia e estragar minha vida, e fazer todos me odiarem. Oh, mãe, ajude-me, por favor!

- Eu ajudo, minha filha, ajudo sim. Não chore tanto, mas não esqueça do dia de hoje, e decida, de todo coração, que você nunca terá outro igual a este. Jo, querida, todos temos nossas tentações, algumas muito piores que as suas, e muitas vezes leva-se toda uma vida para vencê-las. Você acha que seu temperamento é o pior do mundo, mas o meu costumava ser igualzinho.

- O seu, mãe? Como, se você nunca fica com raiva? - e, por um instante, Jo trocou o remorso pela surpresa.


- Venho tentando vencê-lo há quarenta anos e apenas consegui controlá-lo um pouco. Tenho raiva quase todo dia, Jo, mas aprendi a não mostrá-la. E ainda espero aprender a não senti-la, mesmo que precise de outros quarenta anos para conseguir isso. 

A paciência e a humildade do rosto que ela tanto amava eram para Jo uma lição melhor do que o mais sério sermão ou a mais aguda censura. Sentiu-se confortada na hora pela compaixão e pela confiança dadas a ela. Saber que sua mãe tinha um defeito igual ao seu, e que tentava corrigi-lo, tornava o seu próprio mais fácil de suportar, e fortalecia sua resolução de curar-se dele, embora quarenta anos, para uma menina de quinze, parecessem tempo demais para vigiar e orar. 

- Mãe, quando a Tia March reclama, ou outras pessoas a incomodam, você sai da sala apertando os lábios. É por que está com raiva? perguntou Jo, sentindo-se mais próxima e mais querida da mãe do que nunca. 

- Sim, aprendi a segurar as palavras duras que brotam nos meus lábios. E, quando sinto que elas vão conseguir sair contra minha vontade, eu simplesmente me afasto por um minuto, e brigo comigo mesma por ser tão fraca e má – respondeu a sra. March, com um suspiro e um sorriso, enquanto alisava e ajeitava os cabelos despenteados de Jo. 

- Como aprendeu a ficar calma? Este é o meu problema, porque as palavras duras voam para fora antes que eu entenda o que está acontecendo. E, quanto mais falo, pior eu fico, pois acabo gostando de ferir sentimentos das pessoas e de dizer coisas horríveis. Diga-me como fazer isso, mamãe. 

- Minha boa mãe costumava me ajudar... 

- Como você faz conosco - interrompeu Jo, com um beijo agradecido.

- Mas eu a perdi quando era um pouco maior que você, e durante anos tive de lutar sozinha, porque era orgulhosa demais para confessar minha fraqueza a qualquer outra pessoa. Foi difícil, Jo, e chorei muitas lágrimas amargas por causa de meus fracassos. Apesar dos meus esforços, eu parecia jamais conseguir. Então seu pai apareceu, e fiquei tão feliz que achei fácil ser uma boa pessoa. Pouco a pouco, porém, quando tive quatro filhinhas a minha volta e ficamos pobres, o velho problema começou novamente. Pois não sou paciente por natureza, e aborrecia-me muito não poder dar às minhas filhas o que elas queriam. 

- Pobre mamãe! O que a ajudou então? 

- Seu pai, Jo. Ele nunca perde a paciência, nunca duvida nem se queixa, mas sempre tem tanta esperança, disposição e fé, que se fica com vergonha de agir de outro modo na frente dele. Ele me ajudou e me consolou, e me mostrou que eu devia tentar exercer todas as virtudes que desejava encontrar nas minhas filhas, para lhes servir de exemplo. Era mais fácil tentar por causa de vocês do que por minha própria causa. Um olhar assustado ou surpreso de uma de vocês, quando eu falava em tom áspero, repreendia-me mais do que qualquer palavra. E o amor, o respeito e a confiança de minhas filhas eram a mais doce recompensa que eu podia receber pelos meus esforços para ser mulher que elas gostariam de imitar. 

- Oh, mamãe! Se eu fosse só metade tão boa quanto você já ficaria satisfeita - exclamou Jo, comovida. 

- Espero que você seja muito melhor, querida. Mas é preciso manter vigilância sobre o seu "inimigo íntimo", como diz papai, senão ele vai entristecer sua vida ou até mesmo estragá-la. Você teve um aviso, lembre-se dele, e tente com todo o coração controlar esse temperamento explosivo, antes que ele lhe traga dores e pesares maiores do que teve hoje. 

- Vou tentar, mamãe, de verdade. Mas você precisa me ajudar, me lembrar, e evitar que eu estoure. Lembro-me de ver papai às vezes levar um dedo aos lábios e olhar para você de um modo sério mas gentil. E você sempre apertava os lábios ou saía. Ele estava lhe lembrando? - perguntou Jo. 

- Sim. eu pedi a ele que me ajudasse, e ele nunca esqueceu. Aquele pequeno gesto e aquele olhar gentil me salvaram de muitas palavras ásperas. 

Jo viu que os olhos de sua mãe se molharam, e que seus lábios tremiam enquanto falava. Temendo que tivesse falado demais, ela sussurrou, ansiosa: 

- Fiz mal em observar você e falar sobre isso? Eu não queria ser rude, mas é tão bom poder dizer tudo o que penso me sentir tāo segura e feliz aqui.

- Minha Jo, você pode dizer qualquer coisa à mãe, pois minha maior alegria e orgulho é sentir que minhas meninas confiam em mim e sabem o quanto eu as amo. 

- Achei tivesse magoado você. 

- Não, querida. Mas falar de seu pai me faz lembrar o quanto sinto a falta dele, o quanto devo a ele e o quanto preciso vigiar e trabalhar para manter suas filhas sās e salvas para ele. 

- Contudo, mesmo assim você disse a ele para partir, mamãe, e nem chorou quando ele se foi. E também não se queixa agora, nem demonstra precisar de qualquer ajuda - disse Jo, intrigada. 

- Dei o melhor de mim ao país que amo e guardei minhas lágrimas até ele partir. Por que deveria me queixar, se ambos fizemos apenas o nosso dever e, quando tudo acabar, seremos ainda mais felizes? Se pareço não precisar de ajuda, é porque tenho um amigo melhor, melhor até que seu pai, para me consolar e me sustentar. Minha querida, os problemas e as tentações de sua vida estão começando, e podem ser muitos. Mas você pode superá-los sobreviver a eles, se aprender sentir a força e a ternura de seu Pai celestial, tal como sente a do seu pai terreno. Quanto mais você O amar e confiar n'Ele, mais perto se sentirá d'Ele, e dependerá menos do poder e da sabedoria dos homens. O amor e o zelo d'Ele nunca se esgotam nem mudam, nunca podem ser tirados de você, mas podem tornar-se a fonte de paz, de felicidade e de força para toda a vida. Creia nisso sinceramente e dirija-se a Deus com todas as suas preocupações, esperanças, pecados e arrependimentos, com mesma liberdade e confiança com que você se dirige à sua mãe. A única resposta de Jo foi abraçar a mãe com mais força e, no silêncio que se seguiu, a oração mais sincera que ela jamais orou salu de seu coração, sem palavras. Pois naquela hora triste, mas também feliz, ela aprendera não somente a amargura do remorso e do desespero mas também a doçura da penitência e do auto- controle. E levada pelas mãos da mãe ela se aproximara mais do Amigo que acolhe toda criança com um amor mais forte que o de qualquer pai, mais terno que o de qualquer mãe. Amy se mexeu e suspirou enquanto dormia. Como se estivesse ansiosa para corrigir sua falta, Jo olhou para a irmã com uma expressão em seu rosto que nunca se estampara nele antes. 

- Deixei o sol se pôr sobre minha ira. Eu não ia perdoá-la, e hoje, não fosse por Laurie, teria sido tarde demais! Como pude ser tão cruel? - disse Jo, a meia voz, enquanto se inclinava sobre a irmā, tocando de leve o cabelo úmido estirado sobre o travesseiro. 

Como se tivesse ouvido, Amy abriu os olhos e estendeu os braços, com um sorriso que atingiu o coração de Jo. Nenhuma delas disse palavra, mas abraçaram-se com força, apesar das cobertas, e tudo foi esquecido e perdoado com um beijo sincero."

Um comentário:

  1. Obrigada por partilhar conosco essa preciosidade, estou ansiosa para ler o livro.

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